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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Entrevista: O amigo dos noias

O amigo dos noias

Pastor Humberto Machado faz da Cristolândia um facho da luz do Evangelho no abismo do crack.

O amigo dos  noias
Caso vivesse no Brasil de hoje, Jesus Cristo, certamente, não fecharia os olhos para as cracolândias. Esses locais de concentração de usuários de crack, a devastadora droga que se tornou um flagelo nacional, concentram aqueles que um dia o Mestre chamou de cansados e oprimidos. À vista do Estado e da maioria da sociedade, os dependentes da droga – conhecidos, jocosamente, como cracudos – nada mais são que um estorvo dispendioso e perigoso. Aos olhos do Deus de amor, contudo, os quase zumbis que se arrastam pelas ruas ou se amontoam sob marquises, com seus cachimbos improvisados onde ardem as pedras altamente tóxicas, são vidas preciosas no abismo. O problema é que a seara é cada vez maior e os ceifeiros, poucos. Isso, quando existe gente com disposição e coragem de ir até eles oferecer ajuda e o Evangelho da salvação. O pastor Humberto Machado é um desses ceifeiros. Sem alarde, o baiano de 56 anos que, na juventude, foi viciado em cocaína – "Graças a Deus, no meu tempo não existia crack", diz –, ajudou a montar no centro de São Paulo, há quase cinco anos, um ministério cujo objetivo, ousado segundo ele mesmo, é acabar com as cracolândias que se alastram pelo país. Hoje, a Cristolândia, mantida pela Junta de Missões Nacionais (JMN) da Convenção Batista Brasileira, é uma realidade eficiente na vida de centenas de ex-dependentes, que encontraram ali o apoio necessário para o difícil caminho de saída do crack. Já há cristolândias no Recife, no Rio, em Belo Horizonte e outras cidades brasileiras. "Se as bocas de fumo funcionam 24 horas por dia, por que a igreja não pode funcionar?", raciocina Humberto.
Na Cristolândia, viciados, prostitutas, mendigos e meninos de rua – grupos comumente chamados de "excluídos" – podem entrar, comer, tomar banho e ouvir a Palavra de Deus. Mas o foco principal são os dependentes do crack. Ali, eles encontram obreiros e missionários dispostos a ajudar, inclusive o pastor, junto com sua mulher, Soraia (uma das pioneiras do trabalho), e os cinco filhos. Com seu jeito franco, Humberto fala, nesta entrevista, sobre o duro trabalho de reabilitação daqueles que entraram no pesadelo do crack, sem deixar de criticar os crentes que ignoram a realidade dos noias, como os viciados são chamados na gíria das ruas. "Vejo igrejas com seguranças que não deixam nem eles passarem pela calçada", protesta. Embora viva em meio ao pavoroso submundo da droga, o pastor não é um homem amargo ou embrutecido. Ele é cheio de esperança e garante que o crack tem solução. "Onde abundou o pecado, superabundou a graça. Eu creio nesse poder. Existe algo impossível para Deus?"
CRISTIANISMO HOJE – A imagem dos farrapos humanos consumidos pelo crack já faz parte do cenário nacional. A pergunta que todos se fazem, diante desta cena, é se um dependente de crack tem recuperação. O senhor acredita nisso?
HUMBERTO MACHADO – Em primeiro lugar, não concordo com esse termo "farrapos humanos". Não os vejo assim. Nós não podemos ter atitudes de carrasco nem de juiz. Como vamos avaliar essas pessoas que estão nas ruas, os motivos que as levaram a isso? A realidade deles é triste em todos os aspectos. Mas vou responder à sua pergunta: sim, acredito plenamente na recuperação de um dependente de crack. Se eu acredito que Deus é o Deus do impossível, como não posso acreditar na recuperação de um viciado? Eu já fui usuário de drogas, viciado. Por muitos anos, tentei sair dessa de tudo quanto é jeito e não consegui, até que conheci a Jesus. Deus me libertou! Estou limpo há 28 anos. Portanto, não posso deixar de falar daquilo que eu vivo, e eu vivo uma experiência com Deus. Há esperança, sim; basta a gente ter um bom motivo, e qual motivo melhor do que o Senhor Jesus, que morreu para nos salvar? A Bíblia diz que, onde abundou o pecado, superabundou a graça. Se o Filho do homem – Cristo – nos libertar, verdadeiramente seremos livres. Eu creio nesse poder. Existe algo impossível para Deus?
O Brasil é um dos países onde mais se consume crack no mundo. Em sua opinião, que fatores levaram a esta situação?                                                                                         Infelizmente, somos um país de Terceiro Mundo, com enormes mazelas sociais. E o Brasil é muito permissivo em suas fronteiras. Nossos vizinhos na América do Sul são produtores e importadores de drogas, e elas entram no Brasil facilmente. As nossas leis são brandas com respeito ao tráfico, e a corrupção se encarrega de piorar ainda mais as coisas. Assim, a circulação de drogas no país aumenta a cada dia. Lembro-me de que, quando eu era diretor do sistema prisional no Espírito Santo, as cadeias estavam superlotadas de dependentes químicos – porém, contava-se nos dedos os traficantes presos. Por outro lado, não temos uma política séria de combate às drogas, e a tendência é o problema aumentar muito mais.
O crack tem uma particularidade terrível em relação a outros entorpecentes: é capaz de provocar dependência já na primeira tragada. No seu contato diário com dependentes de crack, o senhor observa esta realidade?
Com certeza. O crack, é um entorpecente de características avassaladoras. Todos nós sabemos que a porta de entrada para as drogas mais fortes é a bebida e a maconha. Mas, enquanto o usuário consome drogas mais fracas, ele consegue controlar a compulsão pelo consumo. O crack não; o efeito destruidor que ele causa no usuário, em poucos minutos, é visível. A maioria das pessoas não tem ideia do que é isso. Só quem pode avaliar essa destruição com clareza são aqueles que chamamos de codependentes, ou seja, as famílias dos viciados. Eles, sim, têm uma visão clara, porque vivem em sofrimento. Muitas mães chegam lá na missão com a foto do filho na mão, pedindo ajuda. Aí, nós saímos pela rua procurando o menino.
Seu passado de dependente químico foi a motivação para iniciar este ministério?
Por experiência própria, sei que o viciado só larga a droga se quiser e se contar com a ajuda necessária. Mas minha maior motivação é a compaixão. Jesus de Nazaré não foi um ladrão nem um libertino; mesmo assim, esteve entre os ladrões, as prostitutas, os abandonados. Ele tinha compromisso com aqueles que estavam à margem do conceito social da época. O que deve motivar a Igreja a trabalhar em favor do desvalido é a graça, a compaixão. Isso é o que tem motivado nossos missionários a invadir o inferno das cracolândias e transformá-lo no céu das cristolândias.
Descreva um dia de atividades na Cristolândia para quem chega ali pela primeira vez.
A priori, nosso ministério seria para o atendimento a usuários de drogas. Mas o que descobrimos é que, entre a população da cracolândia, havia também menores abandonados, travestis, prostitutas, gente sem referência de família, que simplesmente foi para rua e foi ficando. Então, a Cristolândia se diversificou no atendimento dessa população. A cada dia nós estamos nos especializando para atender a cada uma dessas demandas. Aqui não existe religião, cor, nada. Pode vir todo mundo. A pessoa pode entrar a hora que quiser, porque sempre haverá um missionário para recebê-lo. Eles são vistos como nossos irmãos, e não vamos jogar nossos irmãos na rua. Oferecemos café da manhã, banho, roupa limpa e uma boa conversa para aqueles que querem conversar sobre sua vida. Às nove horas da manhã, iniciamos o culto, no qual sempre fazemos apelo por uma mudança de vida. Depois, tem o almoço. Na parte da tarde, a pessoa pode descansar, e fazemos estudos na Palavra de Deus, sempre abordando a possibilidade da recuperação.
Quais são as etapas do trabalho de recuperação?
O nosso projeto de recuperação passa por um trilho que nós chamamos de estações 1, 2 e 3. A estação 1 é a abordagem feita de rua e a triagem na Missão Batista Cristolândia. Na segunda etapa, se dá o processo de averiguação da situação familiar, e aí começam as descobertas e restaurações, tanto na esfera pessoal como familiar. Fazemos contatos com pais, filhos e parentes do viciado. Se for possível, promovemos a reinserção familiar através da volta para casa, custeando inclusive viagens para o interior do país. Na estação 3, a pessoa pode optar por continuar conosco, colaborando na recuperação de outros dependentes, ou até mesmo integrando o ministério, se descobrir uma vocação.
E quanto ao índice de efetiva reabilitação?
A reincidência dos centros de recuperação e de unidades terapêuticas é altíssima – em alguns casos, da ordem de 95 por cento. Acredito que essa alta reincidência não é culpa daqueles que estão lá, fazendo seu trabalho com todo carinho e amor. Na avaliação feita por nossa secretaria, das quase 6 mil pessoas que já foram atendidas pela Cristolândia, há uma reincidência de aproximadamente 60%, e esse índice vem diminuindo.
O que explica essa diferença?
O nosso trabalho é diferenciado porque não estamos ali para simplesmente evangelizar, dar folheto ou distribuir sopa. Eu saí do meu conforto, abri mão de muita coisa e coloquei toda a minha família dentro da cracolândia. Outro aspecto que nos diferencia é que, aqui, ninguém paga um centavo. Tudo é mantido pela Junta, com as contribuições generosas das igrejas e dos ofertantes. Não há, também, um prazo fixo de seis, nove meses; o mínimo que a pessoa fica na Cristolândia é dois anos, e com isso nós temos tempo suficiente para a recuperação, tanto dos drogados como dos codependentes.
Boa parte do atendimento na instituição é feito por voluntários, quase todos saídos do mundo das drogas. Contudo, apenas esse voluntariado e a vontade de ajudar não bastam no atendimento efetivo a dependentes químicos. Como é feita a articulação com outros órgãos do gênero?
Depois de passar quase toda a minha vida envolvido direta e indiretamente com os drogados, e sendo psicanalista formado, sei que distúrbios psicológicos requerem tratamento especializado. Quando recebemos indivíduos assim, encaminhamos para os CAPS [Centros de Atenção Psicossocial, mantidos pelo Sistema Único de Saúde], que também oferecem atendimento diário. Entendemos que esse tipo de anomalia deve ser atendida por quem de fato tem conhecimento científico do assunto.
Que tipo de apoio o poder público, nas diferentes esferas de governo, tem dado à Cristolândia?
Nenhum.
Mas as ações de saúde, nas quais se incluem a recuperação de narcodependentes, bem como a garantia de direitos essenciais – moradia, emprego, dignidade –, cabem constitucionalmente ao Estado. Até que ponto a Igreja deve realizar um trabalho que caberia ao poder público que arrecada impostos para isso?
Se a gente jogar a responsabilidade para o Estado, para o poder público, para a polícia, vai acontecer o que está acontecendo hoje em todo o Brasil – uma calamidade pública. Não sou contra a ação da polícia em coibir o tráfico e o consumo de drogas. Também não sou contra as iniciativas do poder público em recuperar as áreas degradadas das cracolândias. Só acho que deveriam ter o cuidado de trabalhar em comunhão com outras entidades, para o negócio dar certo. Senão, vai acontecer o que vimos aqui no centro de São Paulo: a polícia conseguiu tirar os viciados que estavam acumulados ali na Luz. Só que a cracolândia acabou se espalhando mais e mais.
Outras igrejas participam do ministério da Cristolândia?
A Cristolândia deixou de ser um projeto da 1ª Igreja Batista (PIB) de São Paulo. Na realidade, este ministério pertence a todos os batistas do Brasil que ouviram o clamor que vem das ruas. Eu louvo a Deus pela existência da PIB e da Junta de Missões Nacionais. Várias igrejas, como a Assembleia de Deus, assim como outras instituições evangélicas, têm atuado há muitos anos em favor da recuperação de dependentes químicos, mantendo centros de recuperação e unidades de atendimento. Louvo ao Senhor, também, pelo trabalho desses irmãos. Mas acredito que esse momento chegou para nós, batistas brasileiros. A visão da Missão Batista Cristolândia, hoje, é de não envolver esse trabalho com outras denominações. Isso porque percebemos que a maioria das pessoas que passam por comunidades terapêuticas saem de lá sem uma identidade denominacional – e acredito que seja essa falta de identidade que leva a pessoa de volta para as drogas. Essa é uma razão pela qual optamos por não permitir envolvimento espiritual com outras denominações.
O que falta para a Igreja despertar para esse tipo de ação?
O texto de II Coríntios 5.18 e 19 diz que Deus nos reconciliou com ele mesmo por Jesus Cristo, e nos deu esse ministério da reconciliação. Isto é, Deus estava, em Cristo, reconciliando consigo o mundo, não lhe imputando os seus pecados. A vocação da Igreja é para a transformação de vidas, sem perder a esperança e a disposição para o exercício da misericórdia e a construção de meios que possam ser alternativas para o complexo problema das  drogas. A Igreja deve sempre, e por obrigação, lançar luz sobre o poder transformador do cuidado, da abertura, da compaixão, como Jesus bem ensinou. Acontece que, durante muito tempo, ela tem se omitido no cuidado com a restauração e a reconciliação dos menos favorecidos. A Igreja precisa assumir seu papel na ação social, regressando à visão de Cristo, acolhendo aqueles que estão nas ruas, alimentando famintos, visitando enfermos e presos.
Logo, os crentes estão fugindo da responsabilidade?
O próprio Jesus sinalizou essa grande irresponsabilidade daqueles que deveriam ser exemplo. A melhor ilustração para isso é a parábola do bom samaritano. O sujeito estava caído na estrada, ferido; o levita viu e não fez nada, e o sacerdote também não. Mas o samaritano se compadeceu, em amor e graça. Não ficou nisso: ele foi ao encontro do necessitado, assumindo o compromisso e a responsabilidade de conduzi-lo em segurança até onde poderia ser atendido, e pagando a conta por isso. A Igreja precisa acordar e regressar a essa visão de Cristo. Qual é a nossa responsabilidade, hoje? Você encontra bares, boates, cassinos clandestinos, casas de prostituição, bocas de fumo, tudo aberto, funcionando 24 horas por dia. E as igrejas, que deveriam ser relevantes, recebendo quem precisa de ajuda, estão fechadas. Aqui em São Paulo, há igrejas que têm seguranças que não deixam que os noias passem nem mesmo pela calçada do templo.

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